Autor: Manuel Lopes
Professora: Cristina Pacheco
Uma leitura de Chuva Braba de Manuel Lopes *
Quem é “este” leitor e o que faz ele na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, no curso de formação ‘Grandes Livros, Grandes Obras III’.“Este” leitor chama-se Miguel Alexandre Boavida Salgado Fonseca, é licenciado em Ciências de Engenharia – Engenharia Química pela FEUP e descende de uma longa linhagem de professores (tom irónico). Duas bisavós professoras primárias, os quatro avós professores, um deles diretor de um colégio, pais professores, ambos licenciados em Filologia Românica e mais de metade dos tios e primos direitos professores em todas as áreas e níveis de ensino. Quando chegou a altura de fazer a primeira escolha profissional, a resposta foi imediata: professor? Nunca!
Viveu sempre cercado de livros e teve dificuldades de comunicação oral durante muitos anos, refugiando-se na literatura e lendo tudo a que conseguia deitar mão. Viveu parte da adolescência em Macau, onde foi bibliotecário da Messe do Clube Militar de Macau e onde se apaixonou pela primeira vez por uma linda rapariga, filha de um macaense e de uma cabo-verdiana.
Depois de concluir o curso estudando e trabalhando, trabalhou cerca vinte anos na indústria da refinação do açúcar mas a “maldição” da família foi mais forte e dedicou-se à formação e educação de adultos nas áreas da matemática e das novas tecnologias.
Porque lhe pareceu tão fascinante a leitura desta “Chuva Braba” de Manuel Lopes?
Porque nunca esqueceu esse primeiro amor e porque toda a cultura de Cabo Verde, assimilada através das amizades, das estórias e da música, encontrou neste romance muitas respostas sobre a problemática da identidade cabo-verdiana, o amor à terra e a quase inevitabilidade de emigrar.
Porque esse primeiro amor morreu nas Américas há exatamente um ano, depois de lutar durante dez anos contra um tipo raro de tumor, um liposarcoma.
Porque, por coincidências da vida, “este” leitor se encontra atualmente numa situação semelhante ao dilema de Mané Quim: ficar nas terras que ama, entre A Ver-O-Mar e Matosinhos, ou ir trabalhar para Lisboa e arriscar-se a perder a alma, como nhô Lourencinho bem avisa.
O que encontrou este “leitor” de mais surpreendente na obra?
A quase ausência de referências à situação colonial que então se vivia.
A construção do romance em torno de um artifício narrativo que lembra o teatro vicentino: a personagem de Mané Quim vai encontrando personagens que vão sendo alinhadas com uma das duas opções de Mané Quim: ficar ou partir.
As personagens “negativas”, do agiota e do açambarcador, caracterizadas por defeitos físicos (“como um bode” e “vesgo”).
As três personagens femininas que o impedem de partir: o amor por Escolástica, o amor e a responsabilidade pela mãe “nha Joja” e o amor pela Terra como é evidente na descrição da página [21], “As plantas de regadio pediam afagos de homem, afagos e amor; sem afagos e amor, morriam.”
A intervenção de uma entidade exterior, culminante e decisiva na tomada de decisão de Mané Quim: a chegada da Chuva Braba, lembrando afinidades com uma cena culminante do filme “Magnolia”.
Ilha de Santo Antão (Foto: Alberto Pascal Neves Silva)
Em que medida considera “este” leitor que o autor nos mostra uma aculturação brasileira da personagem Joquinha ou, pelo contrário, uma ligação às origens e à sua identidade de ilhéu?
“Este” leitor considera que o padrim Joquinha é apresentado desde o início do romance como um emigrante aculturado, sendo várias as referências à sua linguagem e à sua inadaptação atual ao arquipélago:
[8] “(…) o falar brasil de nhô joquinha (…) a voz do brasileiro (…) «bate-papo» (aprendera a expressão com Joquinha)”
[10] “(…) o tique brasileiro tinha um sabor gozado na sua boca”
[93] Joquinha dá a entender que já não está habituado ao clima e às moscas de Cabo Verde.
[97] Joquinha refere a abertura e o sucesso dos negócios em Manaus.
[100] Joquinha reflete que quem volta, pensa encontrar as coisas como as tinha deixado e essa é a sua principal desilusão. O leitor partilha desta visão porque já passou pelo mesmo.
[115] Joquinha refere que tinha deixado umas nesgas de terra ao abandono e que tratou de as vender, cortando os poucos laços que o prendiam a terra-mãe. Por outro lado, “este” leitor também identifica muito claramente uma nostalgia identitária que é evidente no elogio da cachupa da Maria Lé [143] e no desejo, não claramente assumido, de um dia voltar para morrer na sua terra. “Talvez um dia, quando o corpo pedir descanso, a alma volte com mais alma e me veja forçado a comprar de novo o que estou vendendo agora.”
Como interpreta “este” leitor a personagem Zé Viola, no contexto da narrativa e na caracterização feita pelo autor?
“Este” leitor considera a construção desta personagem como uma das melhores de todo o romance. Preso à terra como Mané Quim, na pág. [14] argumenta com Joquinha “Mas quem diz a nós que um dia tudo vira – e o que é mau fica bom? Porquê que bom há-de virar mau, e não há-de mau virar bom? É questão de cair pra um lado ou de cair pra outro lado.”
A sua aversão à mudança também é visível na recusa em ir tentar a sorte em S. Vicente, embora se sentisse igualmente tentado a seguir Joquinha se ele o quisesse levar para o Brasil ou América “(…) encostava a enxada atrás da porta e dizia logo: - «Bá’mbora»”
A caracterização psicológica de Zé Viola é muito minuciosa na página [106], início do capítulo X: “Moço de sorte, este Zé Viola. (…) Era «perigoso», tinha uma fama diabólica. (…) Tecia intrigas sorrindo (…) como aranha trabalhando com todas as patas ao mesmo tempo.”
Torna-se uma personagem chave do romance ao informar Joquinha da relação de Mané Quim com Escolástica e ao roubar as batatas do terreno de Mané Quim, derrubando parte da parede de suporte do pilar. Mané Quim encarou o assalto “dos daninhos” como um sinal de alarme, um presságio. Sinal de ano ruim. Para todos se porem alerta [113]. Aparentemente seria a fome que desencadearia o começo dos roubos. Foi muito provavelmente este sinal que levou Mané Quim a dizer “- Não é preciso mais histórias (…) eu vou com o padrim.” [125].
O que encontra “este” leitor de tipicamente cabo-verdiano no romance de Manuel Lopes?
As expressões em crioulo
Uma das expressões mais enigmáticas é “fep”. Na pág. [84], a personagem Anselmo está a falar de uma nascente e diz, "(...) Nascente de tapume ou é oito ou oitenta. C'ma suor da terra: quando chove é a primeira a rebentar, mas também quando mingua reforço de fora vai como vem, fep." No glossário “fep!” é traduzido por "completamente" e “este” leitor pôde confirmar indiretamente que na Brava, Fogo e Santiago “fepo” significa “tudo”, como no exemplo “El cumel fepo”, “Ele comeu tudo”. Entre outras palavras e expressões curiosas e algumas com uma certa carga poética, o leitor realça as seguintes: “Calé”,“Codê”, “Desamparinho”, “Dias-há”, “Est’hora assim”, “Papiar”, “Riola”, entre muitas outras. Os próprios nomes e alcunhas das personagens são muito interessantes.
As referências à comida e à bebida
Na descrição da cachupa «com todos os matadores» feita pela Maria Lé [141]. Omeletes com chouriço e batatas fritas [131]. Cuscuz sem canela mas com manteiga. [143]
As referências à natureza botânica e geológica
Em inúmeras descrições, talvez a mais memorável seja a do som das bananeiras a abrir mas também em muitas outras, “(…) Numa margem e noutra trepavam pilares de regadios. Cana sacarina, batatais e mandiocais, goiabeiras, mangueiras e laranjeiras, pedaços acastanhados de terra inculta, feijoeiros com as folhas amarelas e galhos mirrados; nas areias húmidas do álveo, inhames e aboboreiras.”
As crenças populares
No pequeno episódio da “feiticeira” Joana Tuda “aprisionada” por causa da posição da caneca, virada de cabeça para baixo. [87]. Na crença de esfregar nagoia nos pés das crianças preguiçosas. [122] O “gongon” (papão)
A caracterização socioeconómica da população
Contrabandistas de grogue, agiota, açambarcador, grandes e pequenos agricultores, brasileiro torna-viagem, estalajadeira, entre muitas outras figuras que evocam ao leitor uma sociedade específica no tempo, na geografia e na identidade.
Porto Novo, Santo Antão
* Em jeito de “catecismo” e assumindo como inspiração uma das técnicas narrativas usadas por James Joyce em Ulisses
Hermínia - Um Porta Aberto
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